ano 1 • pesquisa

Diário de Expedição


<texto digitado com formatação padrão de transcrição de gravações>
Tenho os pés envoltos em névoa e a sensação de que são muito mais próximos de meus olhos do que de fato são. Olho [adiante] e não vejo senão uma cor branca e pura à [minha] frente. Estico os braços e procuro olhar para as costas das mãos, espalmadas no ar, mas desaparecidas ao mergulharem no espaço branco. [Mexo-as], girando os punhos [no] eixo dos braços rijos e enfim vislumbro o vulto dos dedos gorduchos [que] tinha aos dez [anos] de idade.
Ensaio [um] passo inseguro e pouso a planta do pé sobre uma [superfície] macia. [Vai o] pé esquerdo no encalço do direito, um tanto afobado, outro [tanto] estimulado pelo sucesso da primeira [tentativa. Mas] piso em falso e sinto pender todo o corpo para a esquerda. Abandona-me completamente a sensação de peso. Estou [solto] no ar, escorregando pela cor leitosa que me envolve. A aventura injeta energia e entusiasmo [em meu] corpo, mas meu coração parece paralisado, à espreita dos perigos que prevê [minha] mente.
Aos poucos [sinto-me] desacelerar e o movimento vai sendo suavemente reduzido, enquanto mãos invisíveis e macias [seguram-me e] tornam a soltar para que mais adiante outros dedos, igualmente invisíveis e ternos, enrosquem-se em meus braços, pernas e ombros e tornem a soltar, doce e repetidamente [até que] a queda cesse por completo. [Permaneço] parado, a respiração [ofegante] escapando pelos lábios entreabertos, olhos arregalados, procurando divisar algo reconhecível na paisagem que se mantém uniformemente branca.
Parece-me uma eternidade aquele instante! Tenho os dedos cravados na superfície macia como se esperasse, a qualquer momento, ser arrancado a força [dali por alguma] desconhecida e terrível criatura. Uma massa cinzenta começa a se desenhar à minha frente e aproxima-se com rapidez. Aos poucos, ganha tons mais densos e vejo desenharem-se na massa oval as cavidades dos olhos e, um pouco abaixo, uma mancha que muda constantemente de forma. Relaxo as mãos e solto os dedos das reentrâncias que criei na superfície [em que me] apoio. A criatura já [se aproximou] tanto do meu rosto que reconheço o nariz longilíneo e a simpática careca de meu avô. Ele fala alguma coisa que não compreendo. Talvez [pergunte-me] se estou bem. Ao perceber que cheguei até ali sem nenhum arranhão e ler em meu rosto a mais pura expressão do espanto, ele se ri e estende-me os braços. Sinto [minhas mãos] se aquecerem entre as dele enquanto suspende meu corpo e me coloca de pé. Caminhamos lado [a lado] longas horas. A partir de então, não sinto medo.*

*nota das organizadoras: este relato foi transcrito a partir de uma fita extremamente danificada (provavelmente pela exposição a uma situação de umidade extrema), que se encontrava na caixa que Nano nos confiou. Foi preciso escutá-la muitas vezes para que se pudesse determinar seu conteúdo e compreender a que período se reportava. Durante quase toda a gravação, há apenas pequenos trechos de fala, frases soltas que restaram de relatos parcialmente apagados e palavras praticamente inaudíveis. Através desses indícios, pode-se inferir que tratam-se de anotações de voz feitas por Nicodamus em um período anterior à descoberta da nuvem. As palavras entre colchetes correspondem a falhas no áudio e foram adicionadas para dar coesão e sentido ao texto.



Caderno de Apontamentos Iniciais



<para este trecho que traz as anotações do caderno, serão usadas as imagens dos relatos escritos a mão – indicações a parte serão feitas nos elementos que foram agregados pelos exploradores, como bilhetes de Valentina e a passagem de balão; papéis indicados como "encartados" foram encontrados soltos nas caixas, mas, pelo seu estado, acredita-se que teriam sido colocados entre as páginas do caderno, de onde teriam caído mais tarde, durante os acontecimentos conturbados do final da viagem>

Terça-feira, 07 de abril

É com o coração renovado que hoje me debruço sobre este velho caderno.
Ao final de cada linha, interrompo-me e fito o céu, como quem perscruta o destino. Sinto-me já rodeado de azul, enquanto meus olhos estreitados pela luz testemunham as longínquas dunas de algodão movimentando brancuras.
Nesta contemplação, conduz-me um sonho. Depois de tantas pesquisas, parece-me que enfim descobri o lugar ideal para minha próxima expedição: a nuvem de Clareada. Nunca estive lá e, durante anos, não a considerei senão sob a luz da fantasia presente nas histórias que me contava meu avô. Mas revirando sua biblioteca esta manhã, confirmei a existência de tal paragem, ao consultar uma antiga enciclopédia sobre lugares curiosos, segundo a qual chega-se lá com facilidade tomando-se um balão em um dia de tempo firme, como o de hoje.
É preciso, no entanto, atualizar as informações que traz o volume por meio de novas pesquisas.

<cópia do desenho da nuvem, encontrado na enciclopédia, colada no caderno>




Segunda-feira, 27 de abril



Enfim consegui uma resposta afirmativa da estação meteorológica. Minhas tentativas de agendar uma visita, a fim de, com a ajuda de um profissional da estação, traçar um plano de pesquisa sobre nuvens visitáveis, vinham sendo negadas diariamente pelo supervisor atual. Hoje, estando ele ausente por motivo que desconheço, aconteceu de atender o telefone o antigo supervisor da estação, que embora aposentado há muitos anos, frequenta o espaço assiduamente a fim de realizar suas pesquisas pessoais. Esse senhor apresentou-se-me como "o infatigável Eliseu Virga" e, ao ouvir-me contar sobre meu interesse por tais formações, mostrou-se extremamente solícito em receber-me. Irei até lá amanhã mesmo.


Terça-feira, 28 de abril
Esta manhã, recebeu-me efusivamente na estação o senhor Virga. Apertou-me calorosamente as mãos, justificando a ausência do supervisor, que se encontra de férias nesta semana, e conduziu-me de pronto aos arquivos mais antigos. 
Entrou pelo corredor de mapas e dirigiu-se resolutamente até suas últimas mapotecas, onde já a escada se encontrava posicionada. Subiu com surpreendente agilidade até uma das gavetas mais altas e sacou uma grande pasta encapada com papel marmorizado, identificada com uma etiqueta onde se lia  "SUBLIMACAO-ISOEK14KE19081926". Desceu cuidadosamente até o ponto em que eu pude alcançá-la e, vendo-se com as duas mãos livres, continuou a descida ainda mais rapidamente do que subira.
Levou-me então a uma grande mesa, onde, metodicamente, abriu a pasta, procurou com as pontas dos dedos entre os papéis e deslizou três deles para a superfície de fórmica. Abriu-os, atento à resistência das dobras, evitando amassar as fibras intactas e, enquanto se expandiam sobre o tampo, revelou silenciosamente uma combinação de manchas imprecisas, linhas demarcando formas irregulares que se expandiam, letras, números e setas.
Nunca antes havia eu colocado os olhos sobre semelhante tipo de carta e não pude deixar de demonstrar a confusão mental que tomava conta de minha percepção. Virga explicou-me que ali estavam indicadas as nuvens, pressões atmosféricas e ventos. Ao contrário das cartas de vento a que estamos habituados que, tendo o foco voltado para os continentes não têm validade senão por algumas horas, dado que os ventos logo abandonam suas posições geográficas, estas voltam-se às nuvens e à movimentação do vento na troposfera, que tomam como referência, podendo assim ser consultadas durante anos. Faziam parte de um antigo programa da estação que ele mesmo criou quando era supervisor, a fim de rastrear as nuvens e, através delas, o desenho do movimento constante dos ventos. 
Enquanto o programa teve espaço na estação, Virga pôde dispor de todo o equipamento necessário para se aprofundar nas pesquisas. Conseguiu, com isso, enviar alguns balões-sonda para explorar a troposfera, colhendo dados como a pressão atmosférica, a velocidade do vento e imagens do céu. As fotos capturadas, por vezes, revelavam corpos curiosos entre as nuvens, delineados por contornos rígidos, que muito se assemelhavam a torres de igrejas e topos de telhados. Procurando compreender do que se tratavam esses corpos, chegou a interceptar sinais de rádio de centenas de aeróstatos, colhendo impressões e informações sobre suas rotas. Alguns deles dirigiam-se a localidades de espantosa altitude que revelavam-se pontos desconhecidos (e mesmo impossíveis!) na superfície terrestre. Frequentemente esses balões ou dirigíveis desapareciam durante dias entre as nuvens e depois tornavam a aparecer como se tivessem ficado por todo esse tempo parados no mesmo ponto, de onde então retornavam ao solo. Os nomes mais frequentes dos destinos sinalizados por eles foram listados e observados com insistência, podendo enfim ser relacionados a pontos que nas cartas de movimentação eram fixos (ou seja, que embora se movimentassem em relação ao solo, mantinham-se fixos em relação aos ventos). Em suas análises, Virga notou que esses pontos caíam sempre sobre as mesmas nuvens e passou a incluí-las nos mapas com os nomes indicados nas rotas. 
Luminosa, Nevadinha, Plumbelina eram algumas das denominações delas. O ponto "Clareada" começava a ser estudado, quando o obrigaram a abandonar o programa, que, depois de alguns anos, foi considerado supérfluo. 
Enquanto contava-me o desencadeamento desses fatos, ele foi juntando os três mapas sobre a mesa, de forma que os cantos formavam o desenho de uma nuvem mediana, em cujas bordas estavam indicados pontos que levavam o nome "Clareada". Faltava o quarto canto, que ele não pudera encontrar em parte alguma, mas que não impedia o reconhecimento da nuvem como uma unidade no centro daqueles pontos. 
Virga chegou a compor uma lista dos condutores de aeróstatos que se dirigiam a esses pontos, a fim de colher deles depoimentos que esclarecessem os motivos da peculiaridade de suas rotas e fornecessem pistas sobre as imagens que as sondas haviam colhido. No entanto, o programa fora encerrado antes que ele pudesse entrar em contato, e nada mais se descobriu acerca da questão. 
Este incansável pesquisador revelou-me acreditar que o material forneça indícios de que há, nas nuvens, mais do que estamos habituados a acreditar. Contou-me que seu pai costumava dizer que "em tempos que nem mesmo as nuvens sabemos visitar, tudo está perdido". Ele havia encarado essa frase como uma metáfora, até dar com aquelas fotografias do interior das nuvens.
Ainda assim, o golpe que recebeu quando não pôde continuar com a pesquisa fora tão violento que ele acabara endereçando seus interesses a outras investigações, a fim de poupar seu coração de cientista. Parece, no entanto, que nossa conversa veio reanimar suas esperanças: entregou-me uma cópia dos mapas, outra da lista de condutores de aeróstatos e colocou-se à disposição para ajudar no que for preciso com minha pesquisa. Sinto que encontrei um fiel parceiro nesta empresa.

<vêm encartados: um postal da estação, um cópia do mapa do céu e das nuvens próximas a Clareada (papel grande dobrado), e a  lista de baloeiros (caligrafia de Virga, papel surrado)>


Quinta-feira, 17 de maio


Permanecem infrutíferas as buscas pelos baloeiros. Já percorri quase toda a lista do senhor Virga, e algo muito curioso se dá: a grande maioria deles não têm identidade registrada em parte alguma! Que significará isto? Serão codinomes, apelidos?
Dos poucos cujo registro pude encontrar, muitos já faleceram, outros, não consegui contatar.
Minha esperança vai minguando como a quantidade de nomes que ainda não foram totalmente descartados da lista..

Sexta-feira, 05 de junho



Tenho frequentado, diariamente, a estação de meteorologia e, enfim, começo a conseguir mais informações sobre Clareada. Pelas análises das informações que já tinha e de novos dados colhidos nos balões-sonda em operação, consegui traçar com o Sr. Virga a curva de previsão do comportamento da nuvem. Pudemos determinar, embora ainda sem grande precisão de datas, as fases de desenvolvimento da formação que ainda são esperadas e a duração de cada uma delas.
Porém, como as sondas de que dispomos são as mais elementares, não conseguimos senão medir ventos e pressão, permanecendo sem novas imagens fotográficas para analisar mais a fundo e determinar o que se pode esperar encontrar no interior da nuvem.

Quarta-feira, 17 de junho

Vejo afinal recompensados meus esforços de esmiuçar a lista de baloeiros. Já ia quase dando por perdida a causa quando, na décima terceira vez que a repassava, consegui contatar um deles. É um entre os poucos cujo nome pude encontrar em uma antiga lista telefônica, mas, nas tentativas anteriores, seu telefone chamava sem jamais ser atendido, motivo pelo qual eu já calculava jamais ter pistas sobre ele. Seguia então percorrendo os números em minha lista, um tanto desencorajado entre as respostas que obtinha: “mudou-se e não tenho contato”, “vendeu-me esta linha há décadas e nunca mais voltamos a nos falar”, “aqui não tem ninguém com esse nome”, “esse número de telefone não existe”, “infelizmente veio a falecer”... Hoje, porém, na peregrinação do indicador sobre os algarismos de 1 a 9, tive a sorte de encontrar o senhor Alberto em casa. Trata-se de um senhor em idade avançada, mas que não pode desfazer-se de sua ocupação de viajar pelos céus — por isso me era tão difícil obter resposta às chamadas telefônicas. Para minha grande satisfação, concordou em receber-me na segunda-feira próxima, quando estará de folga.

Segunda-feira, 21 de junho

Quão frutífero o encontro que tive hoje com o senhor Alberto! Mal pude acreditar quando ele finalmente confirmou minhas suspeitas sobre a existência de nuvens visitáveis!
Começou a conversa um pouco calado, valendo-se do silêncio que abriga os que desconfiam. Perdeu a mulher há muito tempo, logo que os filhos cresceram e empreenderam caminhos próprios. Desde então, passou a viver sozinho, não lhe restando senão a companhia dos viajantes que subiam ao cesto de seu balão com destino às nuvens. Mesmo estes, no entanto, foram rareando rapidamente. Havia já se iniciado um processo de aceleração da vida prática e só aos mais velhos restava tempo para realizar as viagens que o senhor Alberto oferecia. Esses passageiros, aos poucos, se cansaram, adoeceram, despediram-se para sempre. Os mais jovens, atentos demais aos afazeres cada vez mais numerosos do dia a dia, distraíram-se e esqueceram-se do Reino da Sublimação pouco a pouco. Em menos de uma década, já não encontrava o senhor Alberto quem lhe desse crédito quando falava sobre as cidades das nuvens. Primeiro foi considerado filósofo, depois poeta e, por fim, acabou no isolamento dos que perderam a razão. Restaram-lhe como companheiros a velha casa, as velhas xícaras, o quieto gato branco, o balão. “A vida do baloeiro é fazer-se leve” – Alberto infla o pano colorido amarrado ao cesto e vai sozinho ver o horizonte muito abaixo da linha do nariz. Percorre as nuvens recolhendo e deixando passageiros que leva de uma a outra. Volta ao Chão para cuidar do gato, que apegou-se à casa e não consente em subir no cesto. Fatigado das pessoas do Chão e de seu ceticismo, que classifica como absurdas (e mesmo ridículas) essas viagens, o baloeiro fala pouco — ou nada — sobre elas. Tomou-me de início por mais um curioso que vem lhe provocar a memória a fim de constatar sua insanidade. Mas ao ouvir-me falar de Virga e de meu avô e tomar nas mãos as cartas das nuvens que eu havia mencionado ao telefone, foi se permitindo acreditar que poderia ser franco.
“É preciso coragem para empreender essas viagens, filho. Faz-se o que não se faz — o que sempre dizem que não se deve fazer: lança-se o balão às térmicas. As primeiras vezes em que a gente entra no redemoinho são verdadeiramente assustadoras. Mas se a gente mantém a calma, no final da subida, encontra um sem fim de pequenos paraísos para visitar!” E já aí tinha se decidido a contar todas as suas aventuras e falava à larga! Quando encontrei uma pausa, perguntei-lhe sobre Clareada, e ele confirmou em sua fala o que apontavam os indícios que tínhamos: a nuvem existe! Visitou-a poucas vezes, mas conhece alguma coisa. Falou-me dos lagos, florestas e de sua notável topografia. Diz que, como acontece nas outras nuvens, suas montanhas movem-se constantemente, de acordo com o vento e a umidade, mas que ali o fazem com exuberância, criando sempre grandes cadeias de beleza estonteante — muito perigosas de se visitar, no entanto.
Já entrada a noite, despedi-me dele agradecido. Na estante junto à porta de saída, ele encontrou, em sua pequena biblioteca, quase toda composta por dicionários de bolso, um que traz os verbetes de Clareada e mo deu como presente. Aceitei de pronto e com exaltada alegria o volume sem capa, composto por páginas amarelas e quebradiças e perfumado pelo tempo.
Amanhã, no primeiro horário, levarei as novidades à estação. Virga ficará exultante!

<foto do gato de Alberto encartada (espécie curiosa de gato, poderia ter vindo de uma nuvem); desenho técnico do balão.>

Segunda-feira, 03 de agosto

Venho estudando com afinco o dialeto clareado, fazendo uso do dicionário com que me presenteou Alberto. Ao que parece, as palavras são praticamente as mesmas que falamos no Chão, mas usando-se uma construção de difícil entendimento. Há, no entanto, uma série que palavras que ali existem e aqui não, nascidas do cotidiano em lugar tão diverso. Alguns exemplos:
nanco = pequeno elevado de nuvem que as pessoas usam para se sentar
nuveno = extensão de nuvem (corresponde ao que no Chão chamamos "terreno")
sublimatório = o correspondente ao que em terra denominamos "território"
subnuvâneo = camadas mais internas da nuvem, de difícil acesso por sua alta concentração de núcleos de condensação, que tornam os caminhos mais densos e difíceis de transpor
    trégua = pequena clareira de nuvem que surge, por vezes, em uma trilha fechada e onde podem caber de duas a três pessoas
alumínio aluminado = trata-se de um material realmente incrível e completamente diferente do seu "primo", alumínio comum, que aqui no Chão encontramos principalmente em panelas e latinhas de refrigerante. Em contato com água ou em ambientes úmidos, alumínio aluminado cria uma camada de luz em volta de si. Uma luz tão densa que é mais resistente que um bloco de pedra e muito mais leve do que a asa de um passarinho. Com ele são feitas, por anões muito habilidosos que possuem o segredo de sua manipulação, as botas perfeitas para um habitante das nuvens e para quem pratica corrida sobre as águas (obviamente precisarei providenciar um par para mim quando lá estiver).
Também encontrei algumas saudações curiosas que possuem: "Tarde Azul!", "Sol oculto!", "Ventania alegre!", "Sol ao alto!", "Vento breve!", "Brisa Suave!", “Sol abaixo!”, entre tantas outras. Ao que parece, não se contentam em dizer sempre e apenas "Bom dia", "Boa tarde" ou "Até logo", diante da notável variedade climática circundante...

<dupla só com imagem do céu, foto feita por Nicodamus durante a viagem de balão>

Quarta-feira, 09 de setembro
Pelo vapor que me envolve!! Estou sem palavras! É a primeira vez que piso nesta superfície instável! Como é bela e luminosa! É pena que só possa ficar por poucos dias nesta minha primeira visita. Farei um breve reconhecimento do sublimatório e logo devo retornar para dar continuidade aos estudos e preparativos necessários para uma estadia mais longa. Já penso na despedida com um vazio.

Quinta-feira, 10 de setembro

Ontem, durante nosso suspenso caminho até Clareada, Alberto contou-me um pouco sobre como se fazem os deslocamentos na nuvem – assunto que me preocupava um bom tanto, uma vez que pretendo fazer um mapeamento geral do sublimatório nesta primeira estadia e, para tal, preciso de agilidade.
Segundo ele, há diversas modalidades de deslocamentos. Pode-se tranquilamente, por exemplo, caminhar, tendo debaixo dos pés a mais macia superfície, o que permite que se realizem longas caminhadas sem sentir o cansaço que habitualmente nos acomete no Chão. Soma-se a esta vantagem a de não serem tão herméticos os caminhos: há diversos atalhos para aqueles que conhecem bem as formações dos núcleos de condensação locais. É possível lançar-se em um vão aqui e chegar ali, em suave queda livre, ralentada por alguns fiapos de nuvem, economizando até 50 minutos em relação a uma caminhada regular.
Há também os balonetes, pequenos balões que flutuam devido a um leve aquecimento do ar e são impulsionados pelo vento. Podem levar de uma a quatro pessoas a lugares próximos sem oferecer riscos. Geralmente são confeccionados pelas famílias, que escolhem entre os retalhos que sobram das confecções de suas roupas pedaços coloridos o bastante para chamar a atenção de outros baloeiros com que porventura se cruzem. Não se tratam de dirigíveis, entretanto os clareados são muito hábeis em alterar suas rotas, com ajuda de contrapesos e uma pequena vela acoplada ao cesto ou à mochila.
Outra opção, que só se torna viável em dias de vento forte, é a pipa. Requer, todavia, bastante prática e espírito aventureiro, pois o tripulante pode ser lançado, descontroladamente, por alguma corrente de vento. Outro inconveniente é que muitas vezes, se o vento é forte demais, não há outro meio de apear senão abandonando esse veículo ao sabor da corrente (fato que pode explicar as tantas pipas sem dono que vão parar ao Chão sem que se saibam de onde vieram) e fica-se desprovido de uma maneira mais ágil para se deslocar no caminho de volta.
Quando aportamos e já o balão se encontrava seguramente atracado ao cais, Alberto fez questão de levar-me à casa de Tico-Sanhaço, espécie de guia de Clareada, que conhece bem todos os caminhos e atalhos. Recebeu-me ele calorosamente, oferecendo pouso nessa primeira estadia e companhia nas expedições. Em troca, ajudarei com alguns reparos na casa e no balão da família. Este sofreu algumas avarias em seu último passeio, quando ensinava os dois filhos a pilotar – são ainda jovens e acabam de entrar na idade de começar a aprender como se guia um balonete. A casa está em perfeito estado, mas como toda construção feita na nuvem, é delicada e exige pequenos cuidados diários. As paredes e telhados são aqui tecidos com folhas, palha, pequenos galhos, palmas secas e fios de nuvem (estrutura tão fina que chega a ser transparente), fazendo-se necessário, por vezes, refazer a trama em alguns trechos; as janelas são confeccionadas com delicadas folhas de gelo, que podem derreter em dias mais quentes ou trincar nos mais frios, sendo preciso substituí-las.
Na falta do balonete, hoje começaremos as expedições caminhando. Tico-Sanhaço diz que já irá me ensinar alguns atalhos.

<anotações técnicas: balonete, pipa, materiais e construção da casa; desenho: casa de Tico-Sanhaço>
<foto: Nicodamus e Tico-Sanhaço>
Sábado, 12 de setembro

Hoje soube de um aspecto extremamente doce da nuvem. Estando aqui já há alguns dias, reparei que a cada amanhecer cobre-se o sublimatório de pequenas flores esparsas de cores diferentes, que vão se abrindo até a metade do dia e, num movimento contínuo imperceptível, fecham-se sobre si mesmas até o último instante da noite, quando assemelham-se a pequenas cápsulas inacessíveis. No dia de minha chegada, eram lilases, já no dia seguinte, eram vermelhas e hoje estendem uma cor amarela pelos caminhos. Contou-me D. Clara em Neve, uma senhora que acabo de conhecer em casa de Ariadne Algodoeira, onde ia buscar linha e tecidos para a reforma do balonete dos Sanhaços, que a cada dia essa cor se modifica segundo um ciclo que se repete, e cada uma dessas espécies de flores recebe um nome diferente – nome esse com que presenteiam os dias em que aparecem. As flores de hoje chamam-se "vitális", o dia de hoje na nuvem não é, portanto, chamado de sábado, mas de "vitális". E assim, o que no Chão chamamos de "semana", na nuvem chama-se "lumina" e cada lumina é composta por sete dias ou refrãs, chamados "elíris", "semísia", "undúnia", "alúmia", "vincúlia", "gerísia" e "vitális".
Também os meses (ou termis) têm nomes diferentes dos nossos e são 13, compostos cada um por 28 dias, com exceção do último do ano, que tem 29. Pedi à minha nova amiga que enumerasse os meses – tarefa que ela começou com dedicação, mas que já no terceiro nome enveredou por uma rede de histórias que lhe vieram à memória e afastaram-nos dos meses seguintes.
Consegui dela, no entanto, outra informação utilíssima: uma indicação de onde arranjar botas de alumínio aluminado, que tanto têm me feito falta em saídas noturnas. D. Clara em Neve não as utiliza, pois prefere o modelo antigo de galochas com lampião, mas conhece desde pequeno o rapaz que popularizou o novo modelo, a partir do amistoso conhecimento que travou com os anões que as produzem. Irei a procura do local se não nesta tarde, então na semísia, pois amanhã, elíris, é dia de descanso na nuvem.

<anotação técnica: flores da lumina>

Segunda-feira (ou semísia), 14 de setembro

Acabo de sair da casa de Solano Lume, que possui botas de alumínio aluminado para troca e com quem tive uma agradável conversa. Aparentemente (ainda tenho dificuldade para acompanhar a fala solta dos clareados), tendo se perdido em um atalho ao cair da noite, quando ainda estava na primeira infância, Solano alcançou a mina onde trabalhavam numerosos dos anões, que detêm o segredo da manipulação do curioso material metálico luminoso. Apesar de reservados, ao encontrarem indefeso o menino, prontamente se dispuseram a ajudá-lo a encontrar o caminho de casa. Como ele não fizesse senão balbuciar palavras incompreensíveis e rir encantadoramente nas longas horas em que estiveram juntos, os homenzinhos afeiçoaram-se a Solano. Não só não descansaram enquanto não o deixaram sob os cuidados de sua mãe, como também confeccionaram-lhe pequenas botinhas luminosas, para evitar que ele se perdesse novamente. Ora, em menos de um ano seus pezinhos já haviam crescido e, lembrando-se do caminho para as minas, o menino foi pedir que lhe dessem novas botas, que lhe não fizessem bolhas nos dedos. Levou em agradecimento seu brinquedo favorito: um boneco que lhe tinha feito sua avó e que possuía uma longa barba – muito parecido com o mais velho dos anões. Eles, divertidos, logo reconheceram no boneco o estimado companheiro de trabalho e aceitaram a troca. Começava assim uma terna amizade. Solano retornava a cada ano com um presente (um balonetezinho de inflar com a boca, um bonequinho de madeira atado a uma pipa em miniatura, um caderno novinho costurado à mão, etc.) e saía da mina com botas novas. As botas faziam vista aos vizinhos e amigos, que passaram a instar que ele lhes arranjasse pares como aqueles. Os anões que, a pedido do menino, não mediam esforços, passaram a produzir um sem número de botas e, até hoje, trocam com ele os pares encomendados por pequenos objetos bem confeccionados (preferencialmente à mão). Bons bocados de comida recém-preparada também agradam muito.
Encontrei, entre as botas que ele mantém, uma bastante apropriada para meus pés e dei em troca uma brochura que encadernei manualmente, usando um dos melhores papéis que encontro no Chão. Os habitantes da nuvem apreciam muito nossos papéis, por serem de um modo geral mais grossos e de textura diversa dos produzidos aqui.
Antes de retornar à casa de meu anfitrião, ainda consegui do simpático rapaz a lista completa dos meses da nuvem:

1. Búlis
2. Cális
3. Plácis
4. Bris
5. Lufa
6. Molúria
7. Glacis
8. Ababalha
9. Promis
10. Intermítis
11. Brânis
12. Calmaris
13. Nacarado

<pequeno calendário de bolso da nuvem, provavelmente um presente de Solano, encartado>
Domingo, 20 de setembro

Suspeito que minha presença na nuvem tem despertado a curiosidade dos habitantes. Todas as noites, recebemos em casa de Tico-Sanhaço visitas muito bem dispostas a conversar. Não raro, são palestras gostosas, pois a fala dos clareados é muito diferente da nossa. As palavras parecem sair de suas bocas como bolhas de sabão. Suas frases são construídas por meio de um raciocínio inteiramente diferente (embora suficientemente compreensível), em que as palavras não têm ligações tão herméticas como as nossas. Ao contrário, tem-se a impressão de que irão se desprender umas das outras a qualquer momento. Em vez de dizer, por exemplo, "Ontem tivemos um belíssimo pôr-do-sol", dizem "Veio do poente passou aqui laranja azul rosa... fogo vira água no céu... foi, não vem mais...". Já o tinha estudado em terra, mas, no convívio diário, esse dialeto se revela mais e mais inspirador. E não se nota apenas na fala a diferença dos clareados em relação a nós, que somos originais do Chão: são mais cordiais, sorriem com frequência, movimentam-se com mais leveza e alguma lentidão. Têm a pele claríssima; os cabelos quase sempre ondulados e tão leves que esvoaçam o tempo todo; os olhos, não importando sua cor, parecem sempre muito transparentes e cheios de luz; têm a boca e as maçãs do rosto avermelhadas pelo frio; pés e mãos pequenos, com dedinhos esguios e hábeis, que tocam as coisas mais delicadas sem danificá-las.
É certo que em sua companhia meus dias aqui hão de ser assaz agradáveis!
Além disso, trazem-me sempre informações muito úteis à pesquisa, contando sobre os costumes locais e compartilhando memórias. Entre elas, há uma que muito me interessa: as histórias dos antepassados que viveram na primeira vila de Clareada, que acabou por prosperar e crescer, tornando-se uma grande metrópole, mas que, a certo ponto, precisou ser abandonada por razões que ainda não pude compreender. Parece-me, no entanto, entender que ainda se podem visitar as ruínas da Vila Antiga, que dizem ser belíssimas. Pedi a Tico-Sanhaço que me levasse até lá, o que prometeu-me ele fazer quando eu cá estiver em estadia mais demorada. Aparentemente a trilha para as ruínas é muito difícil e será melhor que eu a faça quando estiver mais habituado ao modo de caminhar neste imprevisível nuveno.

<duplas com as fotos do pôr-do-sol, capturadas por Nicodamus durante a visita>
Terça-feira, 22 de setembro
Nestes dias em que tenho percorrido Clareada, tive a oportunidade de presenciar o pôr-do-sol nos mais variados aspectos que o sublimatório proporciona. Vê-lo a partir da nuvem é algo indescritível!
Nas clareiras, o encontro da luz solar com as gotículas da nuvem resulta em grandes projeções ondulantes de cor, assemelhando-se, grosso modo, a uma aurora polar.
Já aqueles que estão embrenhados nas regiões mais centrais de Clareada sentem-se mergulhados na cor predominante de cada poente (usualmente varia do amarelo cálido ao encarnado vívido, passando por tons violáceos), que banha as paredes de condensação, projetando-se de fora para dentro da nuvem e criando a ilusão de que emana dos nancos.
Nas periferias, avistam-se mais claramente as ondulações de cor, que ali tornam-se mais intensas. Os que se arriscam nessas porções mais externas (e instáveis) do sublimatório veem somar-se a essa visão a do próprio sol, enquanto mergulha em terras ou águas distantes. Quando se sobrevoa a terra, veem-se os rios, que, delicadamente, se acendem e apagam um a um. Mas se tem-se a sorte de estar a nuvem sobre o mar, a intensidade da luz é multiplicada ao infinito! Pode-se até mesmo perder a referência do que está em cima e do que está embaixo.
Amanhã, no entanto, torno a ver esse espetáculo da perspectiva do Chão: é tempo de voltar e dar início aos preparativos necessários para a mudança da estação de pesquisa para Clareada. Parto logo cedo, no primeiro balão.

<mapa da nuvem com os lugares listados nessa visita: percebe-se claramente no desenho, pelas cores diferentes e caligrafia levemente alterada, que as anotações dos lugares foram feitas em momentos diferentes, provavelmente à medida em que o explorador ia conhecendo cada local>

Quarta-feira, 23 de setembro

Que grata surpresa tive esta manhã! Contava voltar ao Chão com um dos baloeiros locais, mas quando cheguei ao cais, era Alberto quem me aguardava. Sabendo que era o dia de minha partida, ele trocara seu horário para encontrar-me, o que muito me alegrou. Estávamos os dois saudosos de nossas conversas!
Chegando ao Chão, não fui no entanto direto para casa. O baloeiro insistiu que aceitasse um café, dizendo-me que precisava trocar uma ou duas palavrinhas. Enquanto fervia a água, pediu-me que o acompanhasse pelo corredor que leva aos quartos. Aproximou-se da segunda porta à direita e abriu-a vagarosamente. Descortinou-se então diante de meus olhos imensa biblioteca forrada do chão ao teto com livros que Alberto trouxe de suas incontáveis viagens ao Reino da Sublimação. Com um movimento da mão convidou-me a entrar, guiando-me entre as estantes dispostas labirinticamente, de forma a melhor aproveitar o pequeno espaço da sala, e ofereceu-me uso livre do acervo. Estive lá por longas horas, fazendo uma lista mental dos volumes, abrindo alguns, saboreando antecipadamente a trilha de conhecimento que poderei percorrer. Não parti senão quando os olhos já me pesavam em demasia, em decorrência da leitura e do cansaço provocado pelas aventuras e surpresas deste dia. Apesar disso, estando já agora em casa e confortável, não posso conciliar o sono – mal posso acreditar no material a que acabo de ter acesso! Voltarei lá amanhã mesmo, acompanhado de Virga, a quem já informei da boa nova.


<foto: Nicodamus, Virga e Alberto>