Gerísia, 10 de intermítis
Ah,
deliciosa lume-noite que vem cobrindo os laranjas desta tarde!
Encontro-me,
afinal, em minha morada na nuvem. Ao pôr-do-sol, o balão aportou na então
porção oeste de Clareada, onde tudo e todos se cobriam de uma luz quente e
doce. Nunca antes a vira tão resplandecente!
Dona
Clara em Neve estava à minha espera e recebeu-me com um doce sorriso e seu bolo
de Vapor Branco, que tanto me apetece. Como a noite já se aproximava,
conduziu-me prontamente a esta simpática cabana. Tão logo me viu bem acomodado,
deixou-me com suavidade e um risinho entre alegre e triste, contando como se
sente sobre a chuva final de Clareada "Nuvem não tem outra: Clareada.
Daqui é pro Reino das Águas Correntes... Casa sempre aberta quando lá
também".
A
escuridão agora se adensa e vejo alguns pássaros chegando à nuvem para aqui descansarem
enquanto transcorre a noite. Pequenos vaga-lumes verdes, azuis e róseos
diminuem compassadamente o negrume. A esse respeito, aliás, em minha primeira
visita descobri em registros da biblioteca local que esses pequenos seres são
originários do Reino da Sublimação, bem como o nome que a eles damos em terra.
Recolho-me
já ao sono, pois amanhã devo despertar com o primeiro raio de sol atravessando
a nuvem – além de ser um belíssimo espetáculo, é mister que não me demore mais
do que isso para começar a trabalhar nas pesquisas.
<nova colagem de bilhete, com a
seguinte indicação: "bilhete
enviado por Pedra Teimosa Pequena – a que sobe ao invés de cair.">
Nico!
Boa notícia, irmão querido: estou chegando para ficar com você!
Escrevo do
lugar mais apertado deste balão, por isso a letra tremida. Estou sentada entre
duas enormes senhoras. Elas são simpaticíssimas e têm cheiro de laranja com
canela. Suspeito que as duas sejam Gigantes, pois acabaram de dizer para o
baloeiro que estão a caminho de Clareada para visitar seus parentes nas
montanhas. Eu achava que os Gigantes de Clareada eram uma lenda!
Envio essa mensagem via Pedra Teimosa, vamos ver se funciona. Acabei de
ganhá-la de uma família de texugos, eles disseram que é o jeito mais rápido de
enviar mensagens para Clareada. A Pedra sobe – ao invés de cair – com o dobro
da velocidade da gravidade. A julgar pelo tamanho dessa pedra, ela deve chegar
até você em alguns minutos. Tomara que não caia em cima de seus aparelhos.
Espero que fique feliz com a minha chegada! Já superei o fato de você ter me
abandonado, largado e esquecido no Chão. Você vai reparar que meus olhos estão
um pouco inchados e que estou com olheiras, mas é de uma alergia a pão de
frutas.
Valentina
Vitális, 11 de intermítis
Vão
desejo o de dormir tranquilamente para acordar descansado esta manhã! Estava eu
às portas de meu primeiro sonho quando ouvi a porta – uma porta real, a da
própria cabana – se abrindo, e miúdos passinhos circundarem-me. Acendi a
lanterna e surpreendi ninguém menos do que Valentina cruzando a sala em direção
ao sofá!
Escondera-se
entre os outros passageiros do balão, a traquinas, e seguira-me de longe até
meu abrigo, onde esperara do lado de fora até que a última luz se apagasse.
Tive com ela uma longa conversa e embora não esteja totalmente convencida,
assim que terminar seu copo de nuvem espumada – que ela aliás se esforça por
verter demoradamente –, levá-la-ei para tomar o primeiro balão que leva ao
Chão. Enviei uma carta a nossos pais que deve chegar à casa antes dela e
aliviar a preocupação que certamente sentem.
<fotos dos
primeiros dias na nuvem, os encontros com D. Clara Em Neve e outros
clareados>
<foto
instantânea de um recado escrito no vapor da janela, provavelmente feita e
colada pela exploradora, com a seguinte legenda escrita na página, com sua
caligrafia: "Mensagem subliminar para Nico.">
A Valentina é a
melhor ajudante do mundo. Ela deve ficar em Clareada com Nico, seu irmão
querido!
Semísia, 18 de intermítis
É
com certo alívio que escrevo hoje. Já era tempo de me acostumar ao modo de
andar daqui. É algo que deve ser feito com toda delicadeza e sem nenhuma
preocupação, pois o chão é demasiado instável e se pisamos pesadamente, não é
difícil cair por um túnel de vapor que nos leva a um lugar onde jamais
imaginaríamos chegar. Hoje finalmente
atingi algum progresso: isso me aconteceu apenas sete vezes!
Por
sorte, em meus desvios, tenho encontrado com muitos habitantes, sempre
dispostos a ajudar e conversar.
"Clara
Alvo vasto véu
Alto no alto céu
Vaga.
Vago lume
Sereníssimo cardume
Água.
Águia cortante
Voo preciso no instante
Nada."
(Álvaro
Leves)
(Poesia
declamada a mim por Joana Deriva, a quem encontrei em um dos desvios do dia e
que diz ser esta uma das mais conhecidas e admiradas composições da nuvem.
Conversamos longamente sobre variados assuntos e, quando perguntei sobre seus
planos para depois que a nuvem chovesse, respondeu-me num desabafo: "Sei
nada! Vejo nada! Clareada amor da vida minha! Fazer isso pode não – chover!…
Tenho nenhum lugar pra ir…")
<bilhete
colado no caderno, com a seguinte indicação de Valentina: "Bilhete enviado
por Pedra Teimosa Média.">
Bom dia,
adorável irmão!
Que clima
perfeito nesta manhã! O vento corre forte e determinado, o sol segue gentil. É
um dia ideal para passear, e é isso que vou fazer. Quem sabe consigo aliviar a
tristeza de não estar com você em Clareada.
Tenho estudado muito por aqui. É uma forma de estar perto de você, ó amado
irmão. Obrigada por deixar em casa seu livro Técnicas de Aviação para Viajantes
Solitários. As instruções são bem fáceis de serem seguidas. Quer dizer,
parecem ser. Não se assuste. Não estou fazendo nada.
Vou lançar esta
Pedra assim que sair de casa. Ela é maior que a última, então meu bilhete deve
chegar até você bem rápido. Talvez ela chegue com um pouco de cola e pedaços de
bambu. São coisas que estavam espalhadas pelo chão do quintal ontem à noite.
Mas não se preocupe, não estou fazendo nada.
Da sua (ainda)
solitária irmã,
Valentina
Undúnia, 19 de intermítis
Mas
é claro que não poderia desfrutar em total sossego do cotidiano que ontem
descrevi. Hoje, já no começo do dia fui ainda uma vez surpreendido pela
determinação de minha pequena irmã. Tranquilamente fazia o turno da manhã,
colhendo amostras e pesquisando sobre as plantas que encontrava, com ajuda do
quarto volume de minha Nimbottanica Geral e de meu guia de hoje (Seo
Avoado), quando um enorme losango colorido lançou-se em alta velocidade sobre
um nanco grande e macio: era
Valentina amarrada a uma pipa gigante. Avisados de que ela queria viajar sem
permissão, os baloeiros já não consentem que tome balão algum, e ela viu-se
obrigada a inventar sua própria maneira de aqui chegar.
Como
estivesse, no entanto, atada às varas de seu veículo (o que torna evidente sua
negligência ao estudo do uso de meios de transporte sublimados), não foi
difícil tomá-la ao colo e levá-la ao deque para partir ainda uma vez de volta
para casa... Que retornem meus pacatos dias de exploração...
<anotação
técnica, com desenho:
"Galaxum
Atinge
de 7 a 10 metros de altura. Copa frondosa com inflorescência de cor dourada na
maturidade. Seiva composta por luz e ventania. A cada 3 séculos, suas flores
são lançadas para lugares remotos do universo, onde formarão novas galáxias.
Pode alcançar a idade de 1200 anos.">
[mensagem transcrita de uma gravação feita em uma
fita usada no início da viagem – voz de Valentina (acreditamos que se trata de
uma mensagem aquosa, capturada pelas Gotas Falantes, enquanto Valentina caía de
Pipa, de volta para casa, e que teria chegado até a cabana durante a madrugada,
encontrando o gravador preparado pela exploradora)]
Onde
que eu gravo? Já está gravando, é só falar? É que eu nunca falei com uma gota
antes… Ah, Nico! Oi, Nico! Então, escuta, estou aqui voltando para casa. Espero
que esse vento todo no meu rosto também ventile as minhas ideias… [Cof!] Ah, Nico! Imagine nós dois juntos
em Clareada. Teríamos histórias para contar por muitas festas de família.
Libera um balão para mim, por favor! [Cof!]
Nossa, é muito ar nessa descida vou parar de falar agora que estou ficando com
a boca seca. Minha língua parece um pãozinho desidratado. Pensa em mim! (Fim da
mensagem)
Alúmia, 20 de intermítis de 1080
Tive
um sonho assaz perturbador esta noite: sonhava que não tivera êxito ao enviar
Valentina de volta ao Chão. Quando acordei, sobressaltado, ainda parecia-me
escutar sua voz. Cheguei mesmo a procurá-la em cada canto da casa e não pude
recobrar um sono tranquilo. Desperto hoje com ares de quem ainda dorme.
Tencionava pedir a Tico que me levasse hoje à Vila Antiga, mas calculo não
estar apto a fazer expedições que exijam muita atenção. É, no entanto, preciso
sair a campo de todo modo… Certamente encontrarei o que fazer: há sempre muitas
plantas para tomar nota e gente interessante para encontrar nos caminhos.
<anotações
desenhadas de vestuário e flora>
Alúmia, 27 de intermítis
Hoje
comecei o dia por uma pequena visita a Tico-Sanhaço. Queria finalmente fazer a
trilha até as ruínas! Mas esse bom amigo e guia oficial calcula que eu ainda
não esteja pronto. Aceito resignado suas considerações, pois sempre me valeram.
Por isso, mudei de planos e dediquei-me a uma visita atenta às lagoinhas da
praça central, assaz dignas de um olhar mais alongado. Cada uma traz dentro de
si um tipo diferente de água, o que só se nota se nos demoramos em sua
observação. Algumas são águas mais leves, outras mais densas. Há aquelas que
mal sentimos ao tocar, mesmo que a mão mergulhe por completo (a não ser por uma
quase imperceptível queda de temperatura); outras são bastante geladas e os
dedos demoram-se em descrever pequenos percursos na superfície, que chega a ser
levemente viscosa. Mas certamente o que mais encanta é que, olhando-se
atentamente para qualquer uma delas, pode-se ver um sem fim de desenhos
delicados como se fossem de uma renda, que se expandem multiplicando-se a
partir de um centro e dobrando-se em seguida sobre si mesmos.
Estava
nessa contemplação quando Manequinho Lusco-Fusco, que acabara de chegar à
praça, chamou-me a atenção afim de apresentar-me uma sua amiga, Nívea Névoa.
Aproveitei para coletar mais dois depoimentos para a coleção que estou fazendo
de planos que os clareados têm para depois da chuva. Anoto-os aqui:
-
Manequinho Lusco-fusco: "Eu… pra Luminosa, nuvem grande! Grande nuvem…
Comprei aparelho de escurecer olhos. Lá brilha demais!"
-
Nívea Névoa: "Quis sempre ver dia nascendo tempo todinho… Destino meu é
Reino do Amanhecer! Duvido nunca…"
Disseram-no
inspirados, ele inflando o peito, ela deixando escapar um suspiro.
<foto desse encontro, foto de
Nicodamus com Tico-Sanhaço>
<desenho
técnico
•águas
da praça
•Festeiro
Vegetação
rasteira muito comum nas regiões periféricas da nuvem. Desprovida de folhas,
conta apenas com delicadas hastes que sustentam suas flores douradas. Diariamente
muitas dessas flores lançam-se para o céu como se estivessem em chamas de fogo
prateado. No Chão, são o que conhecemos pelo nome de estrela cadente. A amostra
colhida, privada de sua fonte de nutrição, gradativamente perdeu seu brilho.>
<novo bilhete
colado por Valentina com a indicação: "Bilhete enviado por Pedra Teimosa
Gigante.">
Nicodamus,
Aceitei
que não nos veremos tão cedo. Durante a descida de pipa, todo aquele vento no
rosto me deixou bastante tonta e percebi que preciso me concentrar primeiro.
Sigo estudando sozinha para tornar-me uma grande cientista como você. Quem sabe
nos encontramos em uma de nossas futuras pesquisas. Talvez no Mar Profundo, no
Reino do Horizonte… A vida nos dirá.
Envio, por meio desta Pedra Teimosa, uma recente criação minha. Gostaria que
você fizesse uma análise técnica do meu projeto. Claro, se não for tomar muito
do seu tempo. Não quero causar ainda mais problemas para você, vamos nos ater
ao campo da pesquisa.
Peço desculpas adiantadas pelo tamanho da Pedra. Ela representa toda a minha frustração
saudade.
Nossos pais te mandam um abraço.
Um
breve aceno,
Valentina
Vincúlia, 28 de intermítis
O
dia de hoje começou com um evento que já não chega a ser inteiramente novidade:
ainda em uma das primeiras horas da manhã, topei com Valentina descendo de uma
bicicleta voadora estacionada na copa de um Galaxum. É preciso admitir
que, desta vez, empregou muito engenho em sua subida para a nuvem: inventou ela
mesma o maquinário e as velas que fazem com que as duas rodas flutuem e, pelo manuseio do guidão, se possa
escolher a direção a ser percorrida. Não foi sem esforço também que chegou:
imprime-se a velocidade necessária para voar devido às pedaladas, que devem ser
constantes e inúmeras a cada minuto.
Chegando
assim, de forma tão admirável, e tendo já eu esgotado minha criatividade em
capturá-la para enviá-la de volta ao Chão, decidi concordar que desta vez
fique. Mas fica na condição de assistente. Deve acompanhar-me nas expedições,
ajudar a colher amostras e depoimentos, pesquisar dados nas enciclopédias e
fazer anotações sobre as novas descobertas ao fim de cada dia.
Hoje
mesmo já tomou parte nas pesquisas, já que, quando de sua chegada, eu estava
justamente caminhando pelas trilhas com Seo Avoado que, mais do que um ótimo
guia, revelou-se um grande companheiro de expedições. Embora pareça nunca estar
atento ao caminho, olhando muito para os lados (para cima e para baixo também),
mas pouco para frente, não se afastou da trilha nem por um momento.
Nasceu
em Clareada e desde pequeno percorre esses caminhos. Conhece cada planta, cada
erva, cada inseto com que cruzamos. Enquanto caminha, colhe plantinhas para
chás, toma borboletas nos dedos, conversa com os passarinhos. E gosta de
compartilhar esses conhecimentos. Vai apontando aqui e ali e contando sobre
cada ser vivo que se nos põe à vista. Às vezes, conta também sobre os que não
vemos – e que raramente se veem. Bom retrato se faz dele ao relatar sua
resposta quando perguntei para onde iria depois da chuva: "Aquela aí, Orvalheira.
Frutinha pequenita!… Mas molha terra inteira! Ahn? Ah! Onde vou? Ali, remexer
joaninha".
Amanhã
encontramo-nos com ele novamente para percorrer uma outra trilha. Tinha já
acertado com Tico uma expedição à Vila Antiga, mas será preciso adiá-la:
Valentina não poderia nos acompanhar sendo tão inexperiente no modo de aqui
caminhar e deixá-la sozinha está fora de cogitação — sabe-se lá que disparates
poderia fazer vendo-se livre de um olhar vigilante...
<foto: a bicicleta de Valentina na
copa do Galaxum>
<Desenho
técnico do Acesinho
Pequeno
arbusto com flores que ficam luminescentes durante a noite. As flores que se
destacam com o vento espalham-se aos grupos pelo universo e formam novas
constelações. A maioria delas, no entanto, jamais deixa a planta até a sua
morte, contribuindo para que ela se torne cada vez mais luminosa ao longo de
sua vida.>
<relato com caligrafia de
Valentina>
Gerísia, 19 de intermítis de 1080
Aquele
provérbio que diz: Quem constrói a pedalada, chega logo e sem trombada estava
certo! Quer dizer, preciso treinar melhor o pouso da bicicleta porque trombei
em muita coisa até conseguir parar suavemente de ponta-cabeça. Mas, finalmente,
vou ficar em Clareada com você, Nico!
E
que bicicleta, que aparato! Se eu te contar o que usei na construção, você vai
ficar muito orgulhoso da sua irmã. Os freios são feitos de uma mistura de
farinha molhada e palito de dente, por exemplo. Isso que é engenharia!
Quero
explorar Clareada agora! Mas antes preciso fazer algumas compressas nas minhas
pernas, pois elas tremem mais que o pudim de maria-mole da mamãe. Fora que
andar por aqui é muito difícil, preciso de umas botinhas de alumínio aluminado
urgentemente. Sorte que trouxe uma mala cheia de coisas bonitas para trocar. Me
ajuda a escolher um objeto que os anões vão gostar?
<volta a
caligrafia de Nicodamus>
Fecúndia, 20 de calmaris de 1080
Como
temia, o convívio com Valentina não é o mais simples. Como tagarela! Fala
incansavelmente sobre cada nova descoberta sua! E como veio sem antes se ter
debruçado sobre pesquisas, não é de se destacar que cada passo lhe proporcione
surpresas, de modo que me povoa ouvidos e mente ininterruptamente com seus
relatos. Recebo-os ora compartilhando seu espanto, ora com enfado, por não
passarem de situações corriqueiras no tipo de lugar em que nos encontramos.
E
mais: não sei se pela empolgação própria da idade ou se pelas características
que o significado de seu nome lhe imprime, não conhece o sentido da palavra
"medo". Tampouco "precaução" é algo que lhe soe familiar
aos ouvidos. Aventura-se sem mais reflexões em qualquer situação que se lhe
depare, atirando-se a atalhos desconhecidos e frequentando porções perigosas da
nuvem. Não teme terrenos muito densos nem muito instáveis e poucas vezes se
lembra de pedir a companhia de um guia nessas expedições. É preciso, no
entanto, admitir a utilidade desses impulsos: desde que chegou, encontrou quase
uma dezena de espécies raras da fauna e flora cuja existência eu temia jamais
poder confirmar.
<caligrafia
de Valentina>
Elíris, 27 de
nacarado de 1080
Hoje passei mais um dia andando por aí atrás das
plantinhas que o Nico me pediu. Só que foi bem mais divertido do que ontem,
porque fui de balonete, com os filhos do Tico! Aqueles dois são muito
bons pilotos! Conhecem quase todas as acrobacias aéreas da modalidade. E também
conhecem bem as plantas: me levaram direto aos lugares aonde eu ia encontrar as
que estavam na lista do meu irmão, que era bem comprida! Uma coisa que me
deixou de boca aberta foi a quantidade enorme de flores verdes que cresciam por
toda parte… Os meninos falaram que se chamam elíris.
Amanhã já sei que vai ser outro dia que o Nico vai
passar sentado catalogando plantas, uma diversão sem fim... Acho que vou
acompanhá-lo nessa agitação e passar o dia molhando meus pés nas bolhas da
lagoa pequena da praça ou comendo bolo na varanda. Espero não me cansar muito.
<trecho
riscado, numa tentativa de esconder o que escreveu>
Já sei! Amanhã vou sair pra colher flores verdes!
<caligrafia
de Valentina>
Semísia,
28 de nacarado de 1080
As flores verdes sumiram! Só tem flores azuis hoje!
Então, mudança de planos, vou ter que sair “pra
colher flores azuis”...
Mas que fenômeno estranho! Ontem mesmo elas estavam
verdes, aguadas e vaporosas!… Hoje azuis? Talvez eu faça uma mudança real de
planos: isso merece uma investigação. Tenho certeza de que as verdes estão
escondidas ou fantasiadas de outra cor. Vou atrás delas!
<volta a
caligrafia de Nicodamus>
Semísia, 28 de nacarado de 1080
Muito
cedo se mostram justificadas minhas preocupações com relação à presença de
Valentina na nuvem. Saiu esta manhã para um passeio a fim de colher flores
azuis, e a noite vem encontrá-la ainda fora de casa. Eu estive tão absorto
catalogando as espécies que ela colheu nos últimos dias que não me dei conta de
sua longa ausência senão quando o sol já ia nuvem abaixo. Foi inútil procurá-la
nos arredores. Voltei para casa a fim de vestir minhas botas de alumínio aluminado,
que devem contribuir na busca agora que não conto mais com a luz do dia.
Procurarei reunir alguns vizinhos para me auxiliarem a cobrir sublimatório mais
amplo.
(...)
Que
desesperança! Minha mente ferve, meus pés doem e há algo na sensação toda que
nem saberia descrever... Vale, onde foi que você se aventurou desta vez? Por
que tanta demora? Ah não, desta vez haverá uma punição seriíssima.
Volte,
Vale, por favor...
Undúnia, 29 de nacarado de 1080
Não
posso senão agradecer, pois este último dia do ano presenteou-me com uma nota
de esperança e alívio. Encontrando-me os primeiros raios de sol já sem forças
para seguir com a busca sem antes alimentar-me minimamente, dirigi-me à casa –
e dei com Valentina sentada nos degraus da varanda. Esperava-me calada e com a
pele fria, mas sem nenhum arranhão sequer. Tratei de envolvê-la no meu casaco e
colocá-la para dentro. Preparei um chá quente de elíris e uma refeição
reforçada para reaver nossas forças. Em seguida, enviei um passarinho de recado
aos vizinhos para dizer-lhes que Valentina havia retornado bem e que cessassem
as buscas. Esperei até que ela se recuperasse e, então, pedi que me relatasse o
ocorrido, o que ela fez com uma serenidade que só não me surpreendeu mais do
que o conteúdo de sua fala.
Contou-me
que, tendo notado que havia um lugar onde cresciam muitas flores azuis ela
decidira-se ir até lá para colher algumas, a fim de enfeitar a pequena mesa
onde fazemos nossas refeições. Mas no caminho, acabara por cair
inadvertidamente em um atalho de abertura pequena, pelo qual ia passando sem se
dar conta. Dentro dele escorregava-se tão depressa que ela perdeu a noção de
para onde ia e, quando deu por si, estava em uma pequena trégua, apoiada sobre
sua bochecha direita, o braço esquerdo jogado por cima da cabeça, o direito por
baixo da barriga e em cima do joelho direito, a perna esquerda esticada meio de
viés sobre o pé direito (posição que considerei deveras desconfortável quando
ela me mostrou), sem poder dizer de que direção tinha vindo. Por certo, caíra
num desses pequenos atalhos que se fecham tão logo se sai deles e, não tendo
pistas de que caminho tomar para retornar, lançou-se em marcha guiada apenas
pela intuição (tenho esperança de que a experiência lhe inspire a não mais ir a
campo sem bússola). Foi assim embrenhando-se mais e mais, a nuvem ficando cada
vez mais densa até que finalmente, em nova trégua, começou a sentir um vento
suave que torcia seus cabelos em torno da cabeça. Enquanto ela se ocupava em
liberar as vistas dos fios castanhos e de um cisco ou outro, nos intervalos em
que podia manter os olhos abertos, viu surgir diante de si uma luz que foi se
tornando cada vez mais forte. Não era tão intensa que incomodasse os olhos (já
demasiado incomodados), mas cálida, revelando pequenas movimentações de fiapos
de nuvem que, afastando-se do centro luminoso, deixavam entrever algo que ela
de pronto não compreendia o que era.
Quando
o vento cessou e já ela podia abrir os olhos, estava diante de si um ancião,
que parecia emanar a claridade. Era pequeno e tinha um ar risonho. Trazia algo
entre as mãos que ofereceu a Valentina, estendendo-lhe os braços. Como ela
permanecesse paralisada de espanto, ofereceu-lhe também algumas palavras doces
incompreensíveis. Ainda uma vez, sacudiu as mãos, como para encorajá-la a
aceitar o presente, e acabou por alojá-lo ele mesmo entre os dedos dela,
fechando-os sobre o objeto para que não caísse. Descrevendo uma marcha circular
em torno de Vale, descarregou um fluxo intenso e apaixonado de palavras
desconhecidas que, num crescendo, alcançou seu ápice em altura e velocidade de
pronúncia, a partir do que retornou gradativamente ao sussurro e, finalmente ao
silêncio, quando o ancião assumiu novamente o lugar que ocupava quando Vale o
avistara. Ali ele se demorou mais um pouco e, apontando para ela os olhos
brilhantes, deixou que ela lesse neles algo que ela não compreendia, embora
estivesse claro e cristalino como as águas da praça. Desapareceu em seguida,
como se jamais houvesse estado ali.
Soprando
ainda uma vez, o vento afastou a névoa, porém então não revelou o ancião, mas
um coelho dourado que circundou os pés de Vale e saiu em carreira – ela atrás
dele, certa de que encontraria assim o caminho de casa, o que de fato aconteceu
tão logo desvaneceu-se o coelho, deixando ainda menos pistas do que o ancião.
Restou
da experiência a sensação de que tudo não passara de imaginação e, segundo me
diz Vale, o objeto que o ancião lhe entregou (que ela, no entanto, recusa-se a
me mostrar, alegando que foi confiado a ela). Está ainda muito agitada pelas
emoções que experimentou. Conceder-lhe-ei o tempo necessário para se acalmar e
decidir-se a mostrar-me o presente ou confessar que nada do que me relatou de
fato ocorreu. Além do mais, não quero entrar em atrito com ela em dia de festa:
hoje despedimo-nos deste ano e nos preparamos para acolher o próximo.
<caligrafia de Valentina>
Acho que eu
preciso mesmo ser mais cuidadosa. Ainda vou acabar estragando a nuvem… É tudo
tão frágil aqui!
Quando eu saí
atrás das flores verdes, não tinha ideia do que ia acontecer. Fui olhando aqui,
ali… só encontrava flores azuis! Decidi procurar um atalho para algum lugar que
eu tinha sobrevoado de balonete e
onde eu tivesse visto muitas Elíris...
fui entrando em vários, cada vez mais fundo na nuvem.
Mas eu não
conheço mesmo os caminhos. Fui me embrenhando, rolando, caindo, arrastando
plantinhas... Devo ter feito alguma coisa muito errada no final, alguma coisa
que machucou aquele vovozinho, porque depois que ele me deu o presente, ele
choveu! Choveu! Virou água bem na minha frente!
Logo antes, eu
estava tão tranquila, olhando pros olhinhos brilhantes dele… Parecia que a
gente estava se entendendo bem… Senti que tinha tanto carinho no nosso
encontro! Depois ele choveu e, na hora, isso também pareceu uma coisa muito
natural. E eu fiquei só contente quando apareceu a lebre dourada! Meu coração
até deu uma dançadinha e se encheu de alegria! Segui a lebre dando risada e
achei até que ela também estava se divertindo. Daí, quando comecei a reconhecer
onde eu estava, ela sumiu e eu comecei a sentir uma tristeza muito grande e
pensar que talvez eu tivesse feito alguma coisa errada com ela e com o
homenzinho… Será que ele ficou triste porque eu não respondia o que ele estava
dizendo? Mas é que eu não entendia nada, nada, nem uma palavra! Ou será que eu
devia ter dado um presente pra ele também? Ai, como eu sou distraída! Que falta
de cuidado! Eu nem consigo olhar para o que ele me deu depois disso tudo...
<volta a
caligrafia de Nicodamus>
Alúmia, 1 de bulis de 1081
Hoje
damos boas-vindas ao novo ano inspirados por um dos mais belos espetáculos que
a nuvem já nos ofereceu!
Ontem,
seguindo a tradição em Clareada ao cair da tarde do último dia do ano, vagamos
pelo sublimatório munidos de coloridas lanternas balouçantes. Trata-se
de interessante peregrinação, que dura a noite toda e alcança o amanhecer, em
que os habitantes se encontram uns aos outros ao acaso, reúnem-se, conversam e
tornam a se separar a fim de continuar o passeio. Muitos levam consigo
instrumentos musicais, bandeiras, malabares; outros vestem curiosas roupas
vastas de cores que, em movimentos ondulares provocados pela brisa ou pela
forma de se mexer de quem as veste, preenchem o espaço circundante; quase todos
cantam alguma cantiga popular enquanto caminham. Tem-se a sensação de estar
caminhando pelo palco de um imenso espetáculo – resulta que este espetáculo é a
própria vida.
Conhecemos
assim D. Clara Aerada, tia de D. Clara em Neve, com quem iniciamos interessante
conversa (embora um tanto confusa), que foi interrompida pelo evento naturimbus ao qual aludi no início deste
relato e cujo encanto descreverei a seguir. Já as primeiras notas de claridade
vinham se achegando ao brotar do dia, quando um vento forte, que soprava de
baixo para cima em espiral, começou a carregar folhas, flores, insetozinhos, nancos
e tudo que de mais leve encontrava em seu percurso. Pássaros de todas as cores
e tamanhos, divertidos, aproveitavam esse fluxo, descrevendo voos circulares. O
vento tornava-se cada vez mais intenso e gelado à medida em que o sol nascia, e
a luminosidade ganhava o céu. Então, a ventania cessou, e pequenos flocos de
nuvem cristalizada começaram a cair, filtrando os raios de sol em infinitos
arcos-íris minúsculos em que nos banhávamos, nossas peles coloridas pelo
mergulho na luz refratada. Não saberia dizer por quanto tempo ficamos ali,
deixando-nos estar simplesmente extasiados por essa experiência. Quando
esmaeceram as cores do ar, cada um, em grávido silêncio, retornou à sua casa.
No caminho de volta, sentia meu olhar desperto a ponto de poder reparar em uma
porção de deliciosos recantos que nunca antes havia prestado atenção, como se
não existissem até então.
<desenho técnico de um pequeno floco
de gelo sendo atravessado pela luz e projetando um arco-íris; desenhos das
roupas, lanternas e bandeiras usadas pelos clareados nessa ocasião>
<caligrafia de Valentina>
Clareada
e clareados! Obrigada! Essa noite foi tão bonita que eu comecei a me sentir em
paz outra vez… quase saí voando com os passarinhos durante a giraíris!