vai chover

Vai Chover
Registros encontrados na memória do binofotomultiscópio*
*tratam-se de registros de voz que optamos por transcrever para que integrassem um só volume juntamente com o caderno de apontamentos iniciais (N.O.)

<texto digitado com padrão de transcrição de gravações>

[Nicodamus]
Vincúlia, 01 de promis de 1081

É de manhã. A brancura atravessa a vidraça, revelando a renda luminosa que flutua no quarto.
Lá fora, avisto os habituais companheiros de despertar – telhados, topos de árvores, o indicador de vento da Casa das Lendas, a janela mais alta da torre –  que pairam enquanto os fito com antecipada saudade. Velei as últimas horas da madrugada desejando que ainda estivessem aí, quando o dia se lançasse sobre nós.
Há tempos sabia que a chuva se aproximava. Mas hoje, vendo o momento tão chegado, percebo caírem por terra todos os cálculos, todos os preparativos. Hoje algo extraordinário aconteceu!
Já não posso prosseguir com este depoimento, urge sair e investigar à luz do dia. Mas estarei de volta ao entardecer e trarei comigo algumas palavras.
É preciso registrar toda a história sem delongas, pois a previsão já é certa: vai chover.

[Nicodamus]

Retorno agora de um dia inteiro de expedição e pesquisas, não menos estupefato, não menos repleto de perguntas sem respostas e toda inquietação que me possuía antes mesmo que o dia raiasse.
Não é difícil imaginar que, em um lugar como esse, o tempo todo eu me depare com coisas totalmente diversas do que estamos habituados no Chão. Mas o que se passou nesta madrugada…
Bem, estou já imerso em exaustão. Receio que deva deixar este relato tão importante para amanhã.

<imagem de uma pequena esfera>

[Nicodamus]
Gerísia, 2 de promis de 1081

Apaziguada minha surpresa, venho cumprir minha promessa e contar, afinal, o que me roubou o sossego durante todo o dia de ontem – e hoje também.
Na madrugada de vincúlia, meu sono transcorria com relativa tranquilidade, quando escutei um curioso – e inconveniente – som: "Cr-r-r-r-ruá cu-pá"!
Imediatamente desperto, ao contrário de Valentina, que dormia o sono de mil lagartas em casulos, pus-me a procurar a sua origem.
Rapidamente, calcei minhas botas de alumínio aluminado e lancei-me para fora de casa, envolto em densa neblina. Embora nada pudesse ver, ouvia com irritação o som repetindo-se à minha volta. Apurei minha audição e pude ouvir às minhas costas um farfalhar bem levinho, que poderia facilmente ser confundido com o vento dissolvendo um pedacinho de Clareada, se não fosse pelo fato da temporada dos ventos ter se encerrado há algumas semanas.
Preparei-me então para o ataque e, virando o corpo de um golpe só… deparei-me com uma encantadora esfera, do tamanho do círculo que se forma no encontro entre indicador e polegar, que pairava no completo vazio da noite, pulsando uma doce luz azul.
Ela cantou para mim uma suave melodia e tirou-me para uma dança, os pés suspensos no ar. Mas, no auge de minha sublime sensação de leveza, ela aquietou-se. Toquei-a, e a luz se apagou. É impossível descrever o terrível vazio que me invadiu naquele momento! Mas tive que recuperar a razão a tempo de ampará-la entre minhas mãos, pois a esfera já caía oscilante em direção ao chão macio. Guardei-a com cuidado e esperei a noite toda por alguma reação.
Nada!
Saí assim que amanheceu, deixando para Valentina um bilhete com ordens expressas de não tocar na esfera (o que mais tarde descobri que efetivamente de nada havia valido).
A expedição que fiz durante o dia que se seguiu para encontrar pistas sobre sua origem ou a origem daquele odioso som, tampouco mostrou resultados. Hoje passei o dia debruçado em livros sem, no entanto, encontrar qualquer resposta.
Vejo-me completamente perdido. Não sei por onde seguir em busca de novas descobertas. Mas sinto que estou diante de algo grandioso e temo não desvendar esse mistério antes da chuva que, segundo as últimas previsões, é iminente.

[Valentina]
Olá, Binovídeotodavida! Aqui é a Valentina, já está gravando?
Bom, vim deixar registrado para as futuras gerações de irmãs mais novas que a esfera é minha. Quer dizer... Não sei se ela é minha, mas é de mim que ela gosta mais – isso é cientificamente comprovado. Olha como ela fica quando eu a seguro, está dando para ver? Olha como ela brilha! E esquenta!
Eu fiz uma cama para ela com as minhas meias e temos conversado bastante todos os dias. Sinto que ela gosta de amoras, será que tem amoras em Clareada? Eu poderia fazer uma torta, apesar de não ter certeza de como a esfera faria para comê-la… E se eu a deixasse em cima de uma abóbora flutuante? Será que ela conseguiria sentir o cheirinho da abóbora? Absorver algumas vitaminas? Vou testar!
Outra coisa é que a esfera precisa de um nome. O Nico só a chama de Esfera. Para mim ela tem mais jeito é de Bolinha...

<foto: Valentina com a esfera>

[Nicodamus]
Elíris, 4 de promis de 2011

Hoje nos aventuramos em uma caminhada à periferia da nuvem. É algo perigoso, pois essa é a região mais instável do sublimatório. Mas após tanto tempo sem novidades, foi preciso arriscar. Talvez lá houvesse uma pista do que procuramos – a origem do "Cr-r-r-r-ruá cu-pá".
Nosso guia foi Seo Avoado, que encontramos tão logo saímos de casa e a quem primeiro mostramos a esfera. Ao vê-la, abriu de espanto os olhinhos pequenos, dizendo que algo assim só poderia ter vindo de fora, possivelmente de alguma nuvem mais antiga. Sugeriu por isso que procurássemos por seu rastro nas regiões mais externas e ofereceu-se para nos acompanhar, o que aceitamos de pronto, pois não ousaríamos fazer tal expedição sem a companhia de um nativo que conhecesse bem os caminhos. Valentina levou consigo a esfera, para mantê-la sob nossas vistas no caso de ela apresentar qualquer mudança. Custa-me admitir que minha irmã carregue tal responsabilidade, mas a verdade é que, só nas mãos de Valentina, o globo parece reviver de uma nova forma, emitindo uma muito branda luz amarela. Têm aí alguma espécie de ligação, as duas.
Embora muito pouco tenhamos encontrado daquilo que procurávamos, a caminhada não foi em vão: no mais afastado do centro da nuvem, com os olhos para fora da densa neblina, pudemos ver o encontro dos astros no céu azul! Sol e lua, nestes dias, têm convivido em leveza. E como é grande e bela sua vista desta nossa altura!
Além disso, quando iniciamos nosso retorno, finalmente um sinal: ouvimos bem às nossas costas o som que procurávamos! Viramo-nos prontamente, mas tudo o que tivemos tempo de ver foi uma imensa cauda colorida de penas verde-claro, azul e violeta sumindo na névoa. E mais nada!
Agora, de volta à casa, repousamos nossos corpos fatigados. Seo Avoado está preparando um chá que ele diz ser revigorante.
A esfera não apresenta novos comportamentos.
Valentina colhe florinhas em torno da casa.

<imagem feita nas periferias da nuvem>


[Valentina]
Estou um pouco preocupada com a vista do meu irmão, será miopia? É claro que a cauda colorida do cruá-cupá era uma mistura de vermelho, amarelo e rosa! O Seo Avoado também enxergou essas cores – apesar de que ele estava bem distraído nessa hora refrescando a ponta do nariz em um fiozinho de água que corria ali perto. O Seo Avoado nos surpreende constantemente com seus costumes interessantes.
Uma novidade: a Esfera agora se chama Tôca, a Pitoca. Um nome imponente para essa bolinha que já é tão minha amiga e que está cada vez mais brilhante!

<desenho mostrando Tôca e Valentina, feito pela exploradora em seu caderno de campo>

[Nicodamus]
Semísia, 5 de promis de 2011

O chá de Seo Avoado é mesmo revigorante! Se o não tivéssemos tomado, acho que hoje não teria acordado a tempo para minhas obrigações.
Recito aqui a receita para quando numa próxima oportunidade mostrar-se necessária:

Chá de Borboletas Azuis 


Num pequeno bule azul, despeje um pouco de água da Corredeira do Vento Molhado. Acrescente algumas flores de jasmim e deixe descansar no parapeito da janela que tiver a vista mais bonita. Aguarde a visita das borboletas azuis – elas adoram flores de jasmim. Deixe-as à vontade: elas entrarão no bule e pousarão nas flores, dançando pela água, mergulhando e rodopiando. Após aproximadamente 10 minutos, já terão ensinado cada gotícula da água a voar e se movimentar rapidamente. Felizes com o aprendizado, as gotinhas experimentarão suas novas habilidades sem descanso e ficarão aquecidas pela atividade, produzindo bolhinhas de efervescência. Quando as borboletas voarem para fora do bule em espiral, sirva o chá.

Bem, acho que é tempo de encerrar esta pausa em meus afazeres. Seguimos sem novidades sobre aquele inconveniente som ou a esfera. Há ainda muito que pesquisar! Entrego-me novamente aos livros.

<retrato de Seo Avoado conversando com joaninhas>

[Valentina]
Já tentei de tudo com a Tôca hoje, mas a bolinha está muito entediada. Não quer brincar de quem brilha primeiro, nem de quem apaga por último. Deve ser porque não temos saído muito nesses últimos dias… Mais tarde vou lá fora buscar algumas flores e galhinhos. Estou pensando em fazer uma cabaninha para ela hoje. Fazer uma cabaninha sempre me anima!


[Nicodamus]
Undúnia, 6 de promis de 1081

Hoje fui à casa de Tico-Sanhaço para mostrar-lhe a esfera, na esperança de que seus conhecimentos pudessem jogar luz sobre os últimos acontecimentos. Estive lá duas vezes: na primeira disse-me Brisila, sua esposa, que ele havia saído em busca de algo que não compreendi o que era (o dialeto clareado é algo que parece renovar-se todos dias!) e que voltasse ao cair da tarde; na segunda vez, já lá o encontrei, mas nossa conversa não fez senão redobrar o mistério.
Tão logo mostrei-lhe a esfera, remexeu ele o bolso da calça e dele sacou outra idêntica. “Ovolume voa nunca vi.” Dizia chacoalhando a cabeça de um lado a outro. “Voa canta voa dança… Procurei, procurei… Vem de fora! Só pode!” Acrescentou, para meu espanto, que outros clareados encontraram objetos semelhantes nos últimos dias. Mostrou-me então afoitamente seus livros e anotações, dizendo que não havia neles registro de nada parecido. Acordamos trocar um com o outro qualquer novidade que se nos apresente sobre o assunto.

[Nicodamus]
Vitális, 10 de promis de 1081

Revela-se enfim a razão do comportamento de Valentina nos últimos dias. Não duvido que ela goste naturalmente das flores, mas ultimamente não esteve a colhê-las para si. Tem juntado também folhas secas, fitas e desenhos em torno da esfera, acomodando tudo como se fosse uma cama imperial. E vai além: chegou ao ridículo de batizar a esfera com o nome de "Tôca Pitoca", o que considero, no mínimo, desrespeitoso em se tratando de um objeto de estudo científico. Ao mesmo tempo, no entanto, embora a razão de tal fato fuja à minha compreensão, é inegável que quanto mais ela tem esses cuidados, mais a oval se torna luminosa…

<foto da cama de Tôca>
[Nicodamus]
Semísia, 12 de promis de 1081

Continuamos empacados. Aliás, "continuo", no singular, pois o trabalho de Valentina prospera a olhos vistos. As acomodações de Tôca Pitoca já ganharam a mesa toda, estendem-se pela sala e começam a ganhar as janelas. São fitas, flores, bandeirinhas e toda sorte de pequenos cacarecos que compõem algo tão maior que o diminuto globo, que já não posso atribuir a essas acomodações o nome de cama.
Eu, ao contrário, entre leituras, conversas com Tico e novas saídas a campo, nada descobri.

<foto das instalações de Tôca>
<dupla de páginas: foto de uma revoada de pássaros>
[Nicodamus]
Undúnia, 13 de promis de 1081

Pela tempestade que há de vir! Acabo de ter uma visão!
Agora mesmo, caminhando pelo centro da Vila Nova, minha mente jogou um véu sobre a vista que eu tinha das lagoinhas da praça principal. Foi como se eu não reconhecesse mais esse lugar onde tantas tardes passei a estudar os diferentes tipos de água ali presentes!
Quando piscava, via pássaros – muitos, muitos pássaros –  de todas as cores, voando sobre o céu nublado de Clareada. A cada piscada, meus olhos ficavam mais lentos e mais pássaros surgiam… Mas ao abrir os olhos, eles desapareciam!
Uma vertigem obrigou-me a sentar em um nanco. Tendo me recomposto, minha mente se iluminou. Lembrei-me de um livro que li há muito tempo e sua história pode dar-me a resposta para esses mistérios sobre os quais ora me debruço… Consultá-lo-ei imediatamente!

[Nicodamus]

Cheguei à casa, onde encontram-se ainda alguns dos livros mais indispensáveis que possuo. Encontrei justamente o que buscava e aqui registro as palavras de que procurei me lembrar ainda há pouco na praça:

"Um dia os anjos perceberam que estavam em número muito pequeno para atender às necessidades de todas as pessoas. Então, depois de uma grande reunião, eles decidiram criar novos ajudantes. Cada anjo presente naquele dia arrancou uma pena de sua asa. As penas das asas dos anjos são sagradas. Elas guardam tanta vida dentro de si que uma pena garantiria a vida eterna à qualquer homem. É um grande engano pensar que todas as asas são iguais, elas são igualmente poderosas mas cada uma delas tem uma propriedade, textura e cor diferentes. Os anjos então seguraram suas penas, fecharam os olhos em concentração, e elas foram se transformando em pequenas esferas brancas, com seu interior luminoso. A luz pulsava devagar e continuamente. Os anjos permaneceram de olhos fechados, em profunda concentração. A sensação de importância desse momento foi se expandindo por todo o planeta e, por esses pequenos minutos tão enormes, ninguém ficou triste, ninguém odiou, ninguém se machucou ou feriu. Então surgiu o primeiro canto. Depois o segundo, o terceiro, todos diferentes e igualmente poderosos. Nasciam os pássaros." (O Pequeno Livro da Criação dos Seres Essenciais, pg. 525 – volume 3)

Deixo aqui que o ouvinte – se há alguém que me ouve num futuro que desconheço e em cujo tempo terão talvez se tornado públicos os humildes registros que aqui faço – conclua o que melhor lhe parecer. Tenho já minhas desconfianças, mas prefiro não oficializá-las antes de me aprofundar em meus estudos.

[Nicodamus]
Alúmia, 14 de promis de 2011

Pela leveza do vento que nos carrega a todos! 
Acaba de acontecer algo fabuloso! Não que eu o não tivesse suspeitado, mas vê-lo diante de meus olhos é espantoso!
Estava a fazer o jantar (um delicioso purê de batatas aéreas com molho de tomate voador e couve-nuvem gratinada, minha especialidade) – e a maldizer os barulhos que Valentina fazia na sala (Crec!… Crec!…Crec!...) –, quando seus gritos chamaram-me para junto de si:

–  NICOOOOOOOOOOOO!!!!! NICO NICO NICO NICO NICO NICO NICOOOOOO!!!!!!! VEM AQUI!!!!!! NICO NICO NICO!!!!!”
[neste relato Nicodamus procurou reproduzir o diálogo que acabara de ter com a irmã, chegando até mesmo a imitar como podia o som da voz de Valentina, o que acreditamos ser uma tentativa de registrar com a maior fidelidade possível um dos momentos mais intensos que viveu e dos mais importantes no contexto da pesquisa feita na nuvem. N.O.] 
Quando chego, impaciente, qual não é minha surpresa ao ver, no centro da sala, uma gigantesca ave, bela – embora desajeitada – procurando se equilibrar sobre longas pernas! Quando finalmente conseguiu fazê-lo, pude ver que tinha um porte elegante e era semelhante a um grou.  Disse a Valentina que não se movesse um milímetro sem ordem minha, pois não sabia o que a criatura pretendia fazer. Naquele ponto, deu-se algo que eu jamais poderia prever: a ave abriu as asas e a sala encheu-se de luz! Senti-me então leve, um ser flutuante – como na noite em que encontrara a esfera. Quando recobrei os sentidos, minha irmã já tinha se aproximado, envolvido com os bracinhos o pescoço da ave e dava-lhe um beijo:
– Bem vinda, Toquinha!

–  Epa! “Toquinha”?! – perguntei, descomposto – ESSA É A TÔCA!? Quer dizer que esse bicho, desse tamanhão, estava dentro daquela esfera diminuta?!

Com efeito, aos seus pés eu via os cacos da oval, já sem luz, mas de uma alvura sublime. Apressei-me em colhê-los em um pequeno recipiente de vidro, que depois lacrei.

Pelo que pude medir com um golpe de vista, as asas abertas de Tôca têm aproximadamente 3 m de envergadura. Ela parece ter poder sobre a cor de suas penas, pois olha para elas com os olhos fixos, enquanto as cores se alternam por toda a gama do arco-íris. E quanto mais Valentina ri e pula ao seu redor, mais rápido se dá a mudança, como se a ave ficasse feliz em entreter a pequena.
Não tive ainda tempo de tirar medidas precisas, pois as duas desapareceram porta afora. Vindo de Valentina, não há de ser boa coisa. Já não me posso demorar aqui. É preciso refreá-las, seja lá o que planejam fazer.
[Nicodamus]
Sobre o pano escuro da noite, meus olhos decifram ainda mais negro bordado. A haste reta e longilínea busca as alturas do céu para além dos limites da névoa. Partindo horizontalmente dela, linhas finas sustentam aqui e ali formas pentagonais tão brancas que parecem irradiar luz. Uma pequeníssima mancha escura percorre essas linhas em pulinhos certeiros. Por vezes se demora mais em uma delas — é quando um canto suave e doce parece avançar com a escuridão noite adentro.
Nada de Valentina e Tôca ainda… Mas enquanto busco por elas, avisto maravilhado duas espécies, uma da flora, outra da fauna da nuvem, no momento de seu maior esplendor: a Noturna e o Pássaro da Noite. Vale tem sorte, pois sempre que alguma traquinagem sua me lança a lugares desconhecidos, acabo por encontrar algo de verdadeiramente interessante, o que diminui consideravelmente minha zanga com ela.
<anotação técnica com desenhos, retirada do caderno de campo do explorador:
Noturna*
Árvore que atinge aproximadamente 30 m de altura. Sua copa estreita tem um tronco principal de casca lisa e escura, de onde brotam galhos finos. Estende-se para fora da nuvem. Folhas negras, aveludadas, com aproximadamente 3 cm. Flores solitárias, brancas, com floração em toda lua cheia. A maturação dos frutos ocorre na lua nova. É morada do pássaro da noite.

Pássaro da Noite
Negro, tem aproximadamente 10 cm de comprimento. Durante o dia abriga-se na árvore Noturna, onde se transcorrem suas horas de sono. Durante a noite, desperto, salta entre seus galhos em busca de frutos maduros. Depois de alimentado, voa em torno da nuvem espalhando pela noite seu encantador canto de cor negra, tingido pelos frutos da Noturna. Seus hábitos são o que mantém a escuridão da noite até os nossos dias.>

*a fim de ilustrar a fala do explorador, as anotações destas e de outras espécies que se verão nesta segunda parte do diário foram retiradas do pequeno caderno de desenhos da fauna e flora que Nicodamus passou a manter a partir do momento em que os registros verbais migraram para o aparelho criado por ele.(N.O.)

[Valentina]
Quando eu começo a pensar em fazer algo, a Tôca reage. Quando ela encontra um novo caminho, sinto um arrepio e seguimos juntas em frente. É assim o tempo todo! Nunca passei por nada parecido.
Gostaria de ter a habilidade do meu irmão com as palavras da ciência para conseguir explicar como a Tôca faz isso. A técnica me falta, mas dentro de mim é muito claro como tudo funciona. Talvez minha habilidade seja outra. Eu ainda vou conseguir explicar!
Ah! Também descobri que a Tôca adora ouvir piadas da nuvem. Ela tem um senso de humor fenomenal, dá risada mudando cor! Ontem mesmo, eu estava contando para ela a piada do Gelo e do Vaporzinho, e ela riu tanto que engasgou e ficou tossindo entre o azul e o verde claro. Além de mágica, ela é a passarinha (passarona, vai) mais engraçada que eu já conheci!

<desenho técnico da Tôca, feito por Valentina em seu caderno de campo>
<foto: Valentina e Tôca prontas para uma lição de voo>

[Nicodamus]
Vincúlia, 15 de promis de 1081

Valentina não tem mesmo juízo algum! Na noite passada, saí pela escuridão em seu encalço e, embora nada visse através da névoa, ouvia suas risadinhas nervosas por toda parte ao meu redor. Por vezes, escutava um gritinho seguido de uma gargalhada. Mas meus olhos nada encontravam.
Estava assim, em busca dela e da ave, quando uma grande luz colorida cortou o vapor acima de meu chapéu, forçando-me a ficar de cócoras num evaporar de gotícula! Era Valentina no dorso da ave recém-nascida, dando-lhe lições de voo! Custou-me convencer as duas do absurdo e levá-las de volta à casa para alimentarmo-nos. Recolhemo-nos em seguida, mas ainda pude ouvir os risinhos das duas, que não podiam conciliar o sono, tamanha a empolgação provocada por tudo que haviam vivido na últimas horas.
Hoje, mal o dia clareou, já se haviam levantado. Desta vez, eu estava alerta e acompanhei cada passo das duas do quarto à varanda. Mas então fomos os três pegos de surpresa: na soleira da porta, esperava-nos uma variedade de objetinhos curiosos (folhinhas, pedacinhos de carvão, flores, minúsculos bolinhos de aguano-vaporoso, confeccionados não se sabe por quem, e insetos vivos e ainda zonzos da fuga que certamente tentaram empreender), que ali eram depositados em fileira por quase uma dezena de salamandras. Também elas parecem ter sido surpreendidas pois, tão logo nos viram, assumiram uma postura como que congelada e um pouco solene, que deve ter durado pouco mais de um segundo — no instante seguinte, elas corriam para longe da cabana e desapareceram sem deixar rastro. Permanecemos alguns minutos parados, perguntando-nos o que poderia significar tal visita. Vale e Tôca, que primeiro se recompuseram, adiantaram-se e saíram para voar.
Agora, mal passa do meio dia e tamanho foi o barulho que Valentina fez acerca do pássaro — voando e tagarelando com os clareados — que os curiosos chegam a cada minuto para conhecer o animal. Embora a agitação lhe seja um pouco desgastante, nem tudo é para o mal: esteve aqui D. Clara Em Neve, e trouxe sua deliciosa geleia de gotas verdes!
Vou saboreá-la com um pãozinho de mandioca suspensa em companhia de Tico-Sanhaço, que aqui chamei para ver a ave e aprofundar nossas pesquisas sobre ela.

Tôca tem hoje:
3,5 m de envergadura
2,1 m de altura
2,5 m de comprimento
>ainda estamos tentando descobrir o que ela gosta de comer…

<desenhos técnicos de Tôca e dos objetos deixados pelas salamandras, feitos por Nicodamus>

[Valentina]
Ai meu arco-íris! Eu vou derreter em gotas verdes depois dessa geleia da D. Clara em Neve… Olha Nico, anotei a receita. Duvido você conseguir fazer vários potes e dar tudo para mim e para a Tôca! Du-vi-do!

Geleia de Gotas Verdes da D. Clara em Neve. Colha 5 frutos em forma de frasco de uma Sublimante (os frutos devem estar recém-colhidos e ainda mornos) e encha-os com gotículas da porção verde de um arco-íris. Até chegar em casa, elas já terão condensado. Derrame o suco colhido em uma panelinha de cobre, juntamente com 2 porções de paina-do-ar-adocicada. Pode-se acrescentar uma pitadinha de estrelinhas do reino, para um sabor mais “pinicante”. Mantenha em fogo brando até misturar bem. Acrescente o suco de 2 nuvanjas e misture novamente. Aumente o fogo até ferver. Separe a espuma que se forma com uma desnuvadeira (você poderá usá-la para tomar com sorvete!) e mantenha o fogo até que a mistura fique com consistência de geleia.

Pronto! É só tirar da panela, guardar em um pote de vidro esterilizado, tampar e esperar esfriar: logo, logo você vai provar uma delícia refrescante, ideal para começar o dia! (Ela me disse que fica uma delícia com bolachinhas de voaruta! Pena que esqueci de pegar a receita...)

[Nicodamus]
Gerísia, 16 de promis de 1081

Esta manhã ainda estava de pijamas quando recebi Tico, que chegava entusiasmadíssimo com um livro puído entre as mãos. Servi um calmante chá de orvalheira que ele sorveu, enquanto eu me vestia apropriadamente. Tão logo me sentei à mesa, explicou-me que passara a noite pesquisando na Biblioteca Central, revirando os livros mais antigos que encontrava, em busca de alguma informação sobre pássaros como Tôca. Finalmente, ao folhear o diário do Barão Velum Nevoerum, pareceu-lhe ter encontrado qualquer coisa entre as anotações desenhadas. E tinha mesmo! Quanto mais lia os relatos que a elas se associavam, mais reconhecia neles as características de Tôca.
Ao que parece, Nevoerum viveu em um tempo muito antigo e jamais chegou a conhecer Clareada (é possível que, em seu tempo, a nuvem nem mesmo tivesse se formado). Todos os seus relatos situam-se na nuvem de Nevada, onde aparentemente realizava atividade semelhante à de Tico, pois anotou grande variedade de animais nativos. Entre eles, um grou de penas multicoloridas um tanto luminosas, com capacidade para alterar essas cores de acordo com seu humor. Apesar de ser uma ave de grande porte, nasce de um ovo relativamente diminuto, que desde que é posto possui as características que depois serão vistas na plumagem. Embora ele não escreva claramente sobre a qualidade flutuante e cantante do ovo, relata ter ouvido uma doce e misteriosa melodia na noite que antecede a descoberta do ninho. O contato que teve com a família de pássaros foi o mais amistoso possível: aproximou-se cuidadosa e lentamente, cultivando em seu coração um sentimento de cordialidade e não trazendo nas mãos senão alimento com que tencionava presenteá-los, e sentiu-se como que acolhido entre os mais velhos, que já aguardavam que se rompesse a casca do último ovo. Tendo a ave mais nova se estabilizado sobre suas pernas e sentindo que era tempo de deixá-los a sós, agradeceu calorosamente e despediu-se, colocando-se à disposição para qualquer necessidade.
Resta saber como seu diário chegou a Clareada e porque o grou para cá se dirigiu recentemente.

<foto do registro feito pelo Barão>

Tôca tem hoje:
5 m de envergadura
2,5 m de altura
3 m de comprimento

Tôca gosta de comer:
Floquinhos de nuvens de aguano-vaporoso (devem ser colhidos pouco antes de estarem totalmente maduros, pois quando isso acontece eles voam para o céu, formando novas pequeninas nuvens que se unem a outras. Mas se estão muito verdes, têm muito pouco caldo e são gelados demais)
Seu aperitivo favorito são os frutos do pé de estrelas-cadentes. É preciso colhê-los no meio do dia, já que durante a noite (bem como no amanhecer ou entardecer), eles caem como pequenos fogos de artifício em direção à terra.
Fica satisfeitíssima ao saborear as enormes abóboras flutuantes da horta – tanto que nem é preciso colhê-las: ela mesma as abre e regala-se até não poder mais!

[Nicodamus]
Vitális, 17 de promis de 1081

Acabo de me despedir de Valentina, que saiu para mais uma lição de voo com Tôca, e de Tico-Sanhaço, que mais uma vez cá esteve na primeira hora do dia. Trouxe outros livros que encontramos ontem na Biblioteca Central para nos debruçarmos sobre suas páginas com mais calma, o que nos ajudou a responder algumas das questões que haviam ficado em aberto na leitura do diário de Nevoerum. O “Animalário do Reino Sublimado – Aves Exuberantes” traz uma seleção de espécies identificadas em diversas nuvens que existem ou existiram. O Grou-iriano é uma espécie com hábitos migratórios, cujo ponto constante de retorno foi durante muito tempo a nuvem Nevada. Ali encontraram seu habitat ideal e criaram notáveis laços com outras criaturas conuvâneas. Com o homem, diz-se que desenvolveram uma relação de mútua colaboração mui benéfica a ambos. Quando a nuvem choveu, as aves acompanharam os homens até sua nova morada, mas por motivo desconhecido preferiram não assumi-la como ponto fixo para si, migrando de nuvem em nuvem desde então.
Já o livro “Breve História de Clareada” traz uma pequena explanação sobre a descoberta da nuvem e as primeiras gerações da família Nevoeiro que aqui viveram. Lúcio e Caramela Nevoeiro foram os primeiros a aportar, vindos justamente da recém-chovida Nevada. É possível que Clareada seja o lugar até onde as aves os acompanharam e que Nevoerum fosse um antepassado longínquo do casal, que entre seus pertences teria trazido o diário. Fazemos assim a ponte entre informações que inicialmente pareciam desconexas.
Entre as questões que não havíamos podido responder, fica ainda em aberto o porquê da volta do Grou-iriano a Clareada no presente momento.
(...)
E vamos nós de novo… Já escurece e nem sinal de Valentina! Temo muito pela sua segurança, pois Tôca é demasiado inexperiente em conhecimentos de voo… Vou à casa de Tico pedir que me acompanhe em seu balonete em busca das duas.

[Nicodamus]
Elíris, 18 de promis de 1081

Já amanhece e nada.
(...)
Nada. Nada, nada, nada.
(...)
Estamos exaustos. O vento gelado é implacável e tem reduzido consideravelmente nossas forças e nossa capacidade de manter os olhos atentos para qualquer sinal das duas.
(...)
Cai a noite outra vez. Ao longo do dia estivemos procurando em toda parte. Não há senão retornar à casa e checar se voltaram.
(...)
Ah, Valentina! Por que isso agora? Onde é que se meteram?

<dupla de páginas com foto: montanhas enevoadas vistas a distância>
[Nicodamus]
Semísia, 19 de promis de 1081

Finalmente, após dois longos dias de ausência, Valentina voltou da lição de voo de Tôca!
Parece nem ter notado por quanto tempo esteve fora. Conta eufórica sobre como, em certo momento, as duas avistaram uma descabida quantidade de salamandras. A ave assustou-se e quis dar meia volta, mas Valentina, cujo ímpeto havia sido mordido pelos dentes da curiosidade desde o encontro com tais bichinhos na soleira de nossa porta, instou que deveriam persegui-las. Seguiram seus passos até que desapareceram nos meandros das estonteantes Montanhas Sem Fim. Que perigo correram ali!
Essas montanhas são muito traiçoeiras: a cada minuto pequenos pedaços chovem, enquanto outros se formam (a este caos topográfico devem seu nome, pois nunca ninguém conseguiu medir o exato tamanho das Montanhas sem Fim). Desta maneira, é comum, por exemplo, um alpinista fixar o pino em falso em um nanco que instantaneamente chove, cair em queda livre com a certeza de que seu fim chegou (o que, de fato, por vezes, ocorre), e em seguida ser salvo por um pedaço macio de montanha recém formada. Comprovei os riscos que a região oferece quando a visitei numa certa ocasião, afim de esclarecer uma dúvida com relação ao cultivo das Tuliquídeas, uma das flores mais bonitas e complexas que existem no céu e em cujo plantio os Gigantes de Clareada, que ali fizeram sua morada, são peritos. Vale e Tôca certamente só voltaram a salvo porque conseguiram se manter quase o tempo todo voando.
Mas certamente imprimiu-se na mente de minha irmã algum trauma ou sequela, pois afirma veementemente que avistou um gigante e que, diante de seus olhos, o enorme ser liquefez-se.

(...)

Tôca tem hoje:
• 8 m de envergadura
• 3 m de altura
• 4 m de comprimento
• Começa a trocar suas penas, que estão ainda mais viçosas. Embora suas cores ainda oscilem, ficam agora entre o violeta e o amarelo, passando pelo vermelho, mas não mais pelas cores frias.

Tôca está já tão grande que não podemos mais mantê-la dentro da casa. Durante os primeiros dias de sua existência, Vale, eu e os moradores mais próximos fizemos em conjunto um grande cobertor para aquecê-la durante a noite. Talvez hoje já seja preciso aumentá-lo – entretanto, teremos de fazê-lo sozinhos: o número de visitantes que recebíamos, curiosamente, diminuiu de maneira notória. O próprio Tico hoje não esteve conosco.

[Valentina]
Por causa do passeio que fiz com a Toquinha ontem, meu irmão me pediu para ficar pesquisando imagens de Tuliquídeas. O problema é que as Tuliquídeas são raríssimas, o plantio é muito difícil, quase ninguém conseguiu ver uma de perto. Durante o voo eu avistei algumas, mas só uns pontinhos coloridos. Os gigantes as protegem tanto, mas tanto, que deve ser mais fácil falar com a orelha do que alguém conseguir gravar uma imagem! Meu irmão é muito legal mesmo...
Eis que fiquei o dia todo na Grande Biblioteca de Clareada e achei UMA imagem da Tuli (Tu-li-quí-de-a é muito comprido, fico cansada de falar). Aqui está ela, olha que lindeza! Vou fazer uma cópia pra colocar no caderninho do Nico. Triste é a imagem estar em preto e branco, as Tulis brilham que nem sol na água! Deve ser por isso que os gigantes são tão protetores.
Segundo o livro Nimbottanica Clareada (onde encontrei essa imagem), quem fez o desenho foi o primeiro floricultor daqui, o Seo Geranium Blóm. Esse livro é enooorme, acho que ele gostava mesmo das plantinhas.Vou ler um trecho sobre as Tulis:

"As Orchis tuli-tuli, conhecidas em Clareada como Tuliquídeas, são plantas da família Nimbus Orchililiaceae. Devido à alta pressão atmosférica, frio e concentração de umidade necessários para seu desenvolvimento, as Tuliquídeas são encontradas em sua grande maioria nas Montanhas sem Fim. Os Gigantes que lá vivem, apreciam muito sua beleza e são os maiores (e talvez únicos) especialistas no plantio. Eles possuem uma extensa área da montanha dedicada totalmente ao cultivo da flor. Após um ataque à plantação no ano 30 de Clareada, os Gigantes não permitiram mais visitas, e a existência das Tuliquídeas foi questionada por muito tempo. Elas possuem mais de 106 variações de cor, sendo a lilás e violeta as mais raras. Além de sua beleza, as flores são famosas por seu brilho intenso. Exploradores a usavam como guia no início de Clareada (...)"

Últimas da Toquinha!

• 9 m de envergadura
• 3,5 m de altura
• 5 m de comprimento
• Hoje eu não a levei pra dar uma voadinha, e agora ela tá toda tristonha. Acho que vou dormir lá fora com ela!


<imagem da tuliquídea, retirada do livro e colada por Valentina no caderno de campo do irmão>